terça-feira, 20 de março de 2012

Nossa Herança Política ii

20/03/2012 - Terça-feira, 19:04

Nossa Herança Política
A Ditadura Militar

         Passados trinta anos, podemos avaliar historicamente o que representou para o Brasil o golpe militar e os governos ditatoriais que ele implantou.
         No plano da soberania, desde a Independência o Brasil agia como nação orgulhosa de sua autonomia e ciumenta de sua autodeterminação, repelindo qualquer interferência política estrangeira. No plano econômico, ao longo de todo um século nossa economia crescera ao ritmo anual de 4,4% do PIB. Fato extraordinário, a nível mundial, que nos situava entre os países que mais prosperavam. No plano político, conhecendo embora regimes arbitrários, nunca tivéramos uma ditadura militar de estilo hispano-americano. No plano social, o povo, suas lideranças e uma parte das elites participavam ativamente da vida política e da mobilização para as reformas de base, otimistas quanto ao futuro do Brasil.
         Vinte anos de exercício arbitrário do poder por governos compostos de generais ingênuos, manipulados por tecnocratas sabidíssimos e por políticos reacionários, interromperam nosso processo de auto edificação. Isso ocorreu justamente quando nos capacitávamos para conduzi-lo racionalmente e de forma planejada, no sentido de abrir ao Brasil uma era de desenvolvimento sustentado. Isso é o que faria o governo deposto, dentro de uma democracia participativa, através de uma reforma agrária que incorporaria milhões de famílias à economia e à cidadania, e da execução de uma lei, já promulgada, que obrigaria o capital estrangeiro aqui invertido a atuar de forma solidária com o capital nacional.
         O objetivo real, inexplícito mas demonstrável, do golpe militar – aliás, plenamente alcançado – foi afastar essas ameaças para preservar os interesses do latifúndio e das empresas multinacionais, a fim de perpetuar uma ordem social retrógrada e uma economia dependente e socialmente irresponsável de que nos esforçávamos, há décadas, para escapar.
         A economia brasileira, entregue à gestão de ministros neoliberais, submissos aos interesses patronais, especialmente os estrangeiros, foi orientada para um privatismo exacerbado. Seu primeiro efeito foi o enriquecimento mais escandaloso dos ricos e o empobrecimento mais escandaloso dos ricos e o empobrecimento mais perverso dos pobres. Isso se demonstra pela distribuição da renda nacional, em que a participação dos 20% de brasileiros mais pobres viu-se comprimida, passando de 3,5% para 3,2% de 1960 a 1980, enquanto que, na mesma quadra, os 10% mais ricos elevaram de 39,7% para 49,7% sua participação na renda. Igualmente expressiva da irresponsabilidade social da ditadura foi a redução pela metade da participação do trabalho na renda nacional, enquanto se dobrou a participação do capital.
         Em consequência desse privatismo, o Estado brasileiro empobreceu a ponto de tornar-se impotente para manter seus precários serviços públicos essenciais de saúde, de educação e de previdência. Debilitou-se tanto que se tornou incapaz até mesmo de sustentar o pobre padrão de vida de seus servidores mais imediatos. De fato, os militares, os funcionários, os profissionais liberais e o professorado tiveram seus ganhos mensais reduzidos a uma terça parte, proletarizando-se todos. O salário mínimo foi reduzido à metade. A dívida externa, que era de três bilhões de dólares, em 1963, ultrapassou a centena de bilhões, e seus juros escorchantes passaram a pesar sobre a economia de forma desastrosa, nos tornando insolventes dentro do sistema de intercâmbio internacional a ponto de afetar nossa soberania. Desencadeou-se uma inflação desenfreada em que a moeda nacional se deteriorou, obrigando ao corte de doze zeros, submetendo nossa economia a uma dolarização desastrosa, que acaba de ser oficializada. A invenção aloucada da correção monetária orientou para a especulação financeira quase toda a capacidade nacional de poupança, que, retirada das inversões produtivas, tornou a economia incapaz de crescer, levando-a a uma recessão com índices negativos que nunca conhecêramos. O efeito mais perverso da política econômica da ditadura foi lançar milhões de trabalhadores no desemprego, como mão-de-obra descartável porque excedente das necessidades das empresas, condenando uma quinta parte da população brasileira à indigência, à fome e suas seqüelas: a violência, o abandono de menores e a prostituição infantil.
         Os dois feitos, de inspiração militar, proclamados pela ditadura como suas façanhas maiores: a Hidrelétria de Itaipu e a Rodovia Transamazônica, foram escandalosos engodos publicitários. A onerosíssima rodovia de lugar-nenhum-a-lugar nenhum, invadida pela floresta, virou mato depois de enriquecer prodigiosamente as empreiteiras. Itaipu – contratada, por idiotas razões geopolíticas, como empresa binacional com o Paraguai, mas totalmente paga pelos brasileiros – substituiu um projeto cuidadosamente planejado, que edificaria aquela hidrelétrica em território exclusivamente nacional, a custo muitíssimo menor e sem incidir no crime ecológico de apagar toda a beleza de Sete Quedas. Outros projetos bilionários da ditadura foram tão desastrosos que nem os saudosistas dela os defendem, como a Ferrovia do Aço e as usinas nucleares de produção da bomba atômica.
         Simultaneamente com esses feitos e malfeitos, a ditadura desmontou a política social do trabalhismo, pondo o Estado a serviço do patronato, anulando o direito de greve, acabando com a estabilidade no emprego e submetendo os sindicatos operários à intervenção policial. Abandonou a orientação nacionalista de defesa de nossos interesses, passando a privilegiar os estrangeiros. Uma de suas primeiras medidas foi derrogar a lei de controle do capital estrangeiro. Em lugar da reforma agrária, programada por Goulart para assentar 10 milhões de família em pequenos lotes, a ditadura expandiu o latifúndio improdutivo. Loteou o Brasil Central e a Amazônia em glebas de dez mil de cem mil e até de um milhão de hectares, dadas de favor a especuladores. Generalizou-se a corrupção e o suborno na máquina do Estado, que consentiu nas maiores roubalheiras da história, todas impunes.
         No plano da cultura, vimos decair a criatividade brasileira, que atravessava sua quadra mais brilhante quando a ditadura se instalou. Na educação, o ensino primário piorou tanto que nossas escolas primárias produzem mais analfabetos que alfabetizados, uma vez que só uma minoria alcança a quarta série. O ensino de nível médio, reduzido a três anos, nominalmente profissionalizante, deteriorou tanto a formação de mão-de-obra qualificada como a preparação para os cursos superiores. Nestes, o que cresceu foi o ensino particular pago e ruim, em que os professores simulam ensinar e os alunos fazem de conta que aprendem.
         Para cometer tamanhas barbaridades, a serviço de interesses estrangeiros e de uma elite reacionária descendente de senhores de escravos, os golpistas de 64 degradaram toda a institucionalidade brasileira, afundando o país num despotismo crescente. Começaram rasgando a Constituição vigente, prosseguiram liquidando a vida partidária, anulando o Congresso, decapitando o STF, impondo a censura mais estrita à imprensa, liquidando com nossas manifestações culturais e artísticas, cassando os direitos políticos, demitindo, prendendo e exilando milhares de cidadãos.
         Acabaram por derrogar os direitos civis e submeter a cidadania ao terror, provocando a contestação armada como forma desesperada de ação política. Implantou-se, assim, o terrorismo de Estado através da repressão mais crua, das caçadas humanas, dos assassinatos políticos e da tortura mais desumana. Por fim, os oficiais, vexados diante da cidadania, até deixaram de usar seus uniformes nas ruas. Assim foi, até que, frente à repulsa da Nação indignada, as próprias Forças Armadas, reconhecendo o triste papel que representavam a serviço da reação, se retiraram do quadro político, pondo fim ao papel que encarnavam de capatazes de uma ditadura regressiva e repressiva. Extinguia-se, deixando de rescaldo a crise em que ainda estamos afundados.
         O valor mais alto que perdemos debaixo da ditadura foi o sentimento coparticipado de que o Brasil é um país especial, com destino próprio e singular, a ser alcançado por nosso esforço. Com efeito, a ditadura quebrou em muitos brasileiros o próprio orgulho de patriotas, confiantes e otimistas quanto ao futuro do Brasil. Acanalhou o sentido de honra e de respeito aos bens públicos, generalizando a corrupção até nas cúpulas dos órgãos supremos do poder. Temo, mesmo, que ela tenha quebrado na juventude de classe média, o nervo ético e o sentimento cívico, levando enorme parcela dela ao desbunde e à apatia, dissuadida de qualquer participação política. Perderam-se, assim, para a vida cívica, aqueles que, aqui, ontem, se queimavam pela construção, no Brasil, de uma civilização mais bela e de uma sociedade mais justa.
         Uma geração de estadistas, identificados com o povo brasileiro, deixou de ser formada, abrindo espaço para os negocistas. Tamanhos foram os danos da ditadura, que só nos resta a esperança de uma reversão radical, que devolva aos brasileiros a ousadia de tudo repensar para reinventar o Brasil que queremos.
         Estamos ainda sob os efeitos nefastos desta ditadura, cuja erradicação é a principal tarefa política dos brasileiros. Tarefa enormemente dificultada pela conivência dos políticos e dos negocistas, solidários com a ordem privatista instituída pela ditadura, dispostos a jogar todo o seu poderio econômico no suborno do eleitorado das eleições de outubro próximo, com o objetivo de perpetuar seus privilégios.
Darcy Ribeiro compilado por Euclides Lopes.

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