quinta-feira, 29 de março de 2012

Conhecereis a verdade

29/03/2012 - Quinta-feira, 17:55

Publicado por Pedro Pontual na categoria Direitos Humanos


… e a verdade vos libertará. O célebre trecho do evangelho de João representa uma filosofia do cristianismo que também é
encontrada nos livros e crenças  de outras
religiões. No livro do profeta Isaias, integrante da Torá judaica, escreveu-se que “com a verdade se fará justiça”. O Corão
reforça aos muçulmanos a não esconderem
a verdade se a souberem. No hinduísmo, a verdade é o que não conseguimos ver, mas devemos buscar como forma de alcançar
um estágio superior. O budismo elenca as
“quatro nobre verdades”, referentes à natureza, origem e cessação do sofrimento, sendo a quarta o caminho para a cessação
do sofrimento.

O interessante dessas visões é que a verdade é vista, no contexto de cada fé, como um instrumento, uma ferramenta importante
para a libertação, justiça ou superação.
Não surpreende, portanto, que no mundo secular tenha sido delineado o direito à verdade como um direito humano fundamental.

Como direito humano, o direito à verdade é mais específico que sua contraparte mais famosa, o direito à informação, este
último claramente explicitado no Art. 19
da Declaração Universal dos Direitos Humanos. A estruturação do direito à verdade surge a partir da peculiar dificuldade
de se conseguir descrever os procedimentos
e excessos de regimes opressores para sua sustentação, medidas que se caracterizam por violações de direitos humanos, desde
suspensões de direitos até graves crimes
contra a humanidade.

De fato, o direito à verdade pressupõe não só conhecer as práticas de graves violações de direitos humanos, mas também conhecer
as vítimas e, via de regra, o destino
de muitas dessas vítimas – o desaparecimento forçado é uma das graves condutas violadoras de direitos cuja rejeição se encontra
codificada em tratado internacional
específico.

Assim, o que levou a Organização das Nações Unidas a instituir, em dezembro de 2010, o dia 24 de março como o dia internacional
do direito à verdade não foram filosofias
religiosas, mas a importância e a força de um direito que está intimamente relacionado com o propósito nuclear dos direitos
humanos, de respeito à dignidade humana.
Explico: o direito à verdade traduz, e mantém nos dias de hoje, a mesma força presente naquele 10 de dezembro de 1948, após
o fim de 2a guerra mundial, com o assustador
conhecimento do que fora o holocausto: a ideia de que há práticas hediondas que são absolutamente intoleráveis, mas que,
se cometidas, devem ser conhecidas, com
o propósito de buscar que nunca mais ocorram.

Nesses 60 anos que se passaram, muitos outros governos cometeram graves violações que, por merecerem o termo atrocidades,
não cabem em escala de comparação entre
si. Mas, qualquer que tenha sido a escala, a humanidade tem aprendido a não varrer a sujeira para debaixo do tapete: a pesquisadora
Priscilla Hayner, autora do livro
“Unspeakable Truths”, já catalogou cerca de 40 comissões formadas desde 1974 que atuaram em 35 países do continente americano,
da Europa, Ásia, África e Oceania.

Tais comissões, que aos poucos passaram a ser referidas internacionalmente como Comissões da Verdade – as mais recentes
sendo de fato batizadas dessa forma, com
algumas variações – tiveram atuação focada e exclusiva em pesquisa documental e escuta de testemunhos, com duração média
entre 2 e 3 anos. Segundo Hayner, o objetivo
que caracteriza uma Comissão da Verdade é “estabelecer um registro preciso do passado de um país, esclarecer eventos, e
levantar a manta de silêncio e negação de
um período polêmico e doloroso da história”.

A autora destaca cinco Comissões da Verdade: da África do Sul, uma das mais conhecidas, da Guatemala, do Peru, do Timor
Leste e de Marrocos. Outras comissões também
mencionadas como merecedoras de atenção são duas da Alemanha que, de 1992 a 1994 e depois, de 1995 a 1998, se debruçaram
sobre os 40 anos de governo da Alemanha
Oriental; duas do Chile, que, entre 1990 e 1991 e 2003 e 2005, investigaram a ditadura de Pinochet de 1973 a 1990 e outras
de Sierra Leone, Haiti, Coréia do Sul,
Paraguai, Quênia, dentre outros países.

Em setembro de 2011, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas criou a função de Relator Especial para a “promoção
da verdade, justiça, reparação e garantia
de não-recorrência”, que terá como atribuição apoiar os países na garantia do Direito à Verdade. As razões que embasaram
a ONU mencionam explicitamente que as graves
violações de direitos humanos precisam ser avaliadas, compreendidos os seus contextos específicos, com o objetivo de prevenir
a recorrência de crises e futuras violações
de direitos humanos,  e garantir a coesão social, inclusão e reconciliação nacional, incluindo ajudar a restaurar confiança
nas instituições do estado e promover
o estado de direito.

Assim, o direito à verdade refere-se à uma intenção da humanidade em deixar evidentes os seus erros mais sombrios. A data
escolhida homenageia particularmente o
Arcebispo Oscar Romero, assassinado em El Salvador em 24 de março de 1980. Com este mote, retomemos a citação bíblica: a
verdade nos liberta do nosso passado para
que possamos melhorar as chances de vivermos um presente são. Conhecer a verdade das coisas mais nefastas e hediondas que
a humanidade é capaz de realizar, e exibi-las
para todos, aprendê-las na escola, ler sobre elas, não é cobrar dívidas expiradas do passado, mas sim exatamente o oposto:
é um investimento no nosso futuro.

CONFORME PEDIDO, ESTÁ ENVIADO.


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