10/05/2012 - Quinta-feira
DIREITOS SOCIAIS: IMPERATIVO ÉTICO OU RAZÃO CONSENSUAL
A construção da modernidade está inequivocamente ligada à instauração do contrato, que institui no homem a dicotomia entre o inato e o adquirido, entre a natureza e a cultura. Devemos a Hobbes, sem dúvida, esta inauguração teórico-prática ao final das longas lutas travadas no séc. XVII na Inglaterra e que impunham este dilema moral: prosseguir com as guerras na tentativa de sua legitimação ou interrompê-las pelo direito.
Para ele, a história não é uma propedêutica suave mas uma maiêutica violenta. É o máximo de barbárie, apontada para o extermínio da espécie humana, que introduz a civilização, não como imperativo moral, mas uma utopia da anterioridade. Eis a máxima de Hobbes: “O destino do homem resume-se a uma dupla condição: a de fugitivo do pânico experimentado e a de prisioneiro do medo construído pelo Leviatã...”.
A longa trajetória da democracia corresponde ao processo de modelagem do contrato.
Primeiro, através de uma instituição idealizada como representativa dos interesses coletivos expressos num conceito restrito e vago de cidadania. Mais tarde, progressivamente, como o lugar de articulação de mecanismos para a produção deste consenso. Daí o trânsito da “democracia liberal”, de fundamento ético, para o “liberalismo democrático” do final do século XX, incluindo nesta trajetória não apenas uma mudança política, mas uma redefinição do Estado e da razão soberana, muito menos complexa ao tempo de Hobbes. Neste trânsito, a passagem da cidadania como um atributo natural, inato, que faz de todos iguais perante a Lei, para a cidadania como igualdade nos direitos, vale dizer como construção desta igualdade pela ampliação das oportunidades entre socialmente desiguais. Da “graça” ao “construto”. Ninguém nasce “cidadão”, constrói-se, como tal, através do Estado, da Política e do Direito.
Neste contexto histórico e teórico é que ganharam importância os “direitos humanos”.
Simplesmente, se poderia dizer que a noção mesma do contrato contemplava dois grandes âmbitos de direitos: aquelas indispensáveis à eliminação de diferenças perante a lei, que garantiriam a constituição da sociedade civil separada do Estado - direitos civis - e aqueles indispensáveis à participação no próprio processo contratual - direitos políticos. Em ambos casos, o Direito e o Estado são objetos distintos da sociedade.
Neste sistema de idéias clássicas, à idéia da natureza sobreveio a idéia da razão. Depois vem a moral e a política. O sistema do direito pode-se auto descrever como um produto da política ou de moral, mas não consegue compreender, mediante este tipo de auto-descrição, aquilo que o torna diverso do sistema da política ou das construções morais.
Mas se tudo se resolve na Política, então não há direito. Este modelo de representação do Direito, do Estado e da Sociedade Civil expressava bem o ideal iluminista da razão a serviço do homem, colocando num extremo o Estado como razão suprema e noutro o
reino a individualidade idealizada pelo Direito.
Nem mesmo a ampliação dos direitos humanos para o campo da ampliação das oportunidades que contribuiriam para o entendimento da cidadania como construção e da democracia como processo alterariam radicalmente este modelo clássico. Claro que ampliou consideravelmente o nível de bem-estar e liberdades públicas nos últimos 50 anos, mas rigorosamente continua fundamentado no tripé Estado-Direito-Sociedade Civil, onde se atribui ao primeiro a responsabilidade maior pela estabilidade de todo o modelo regulatório. Cada vez mais, porém, a própria modernidade vai se superando a si própria e “tudo que é sólido desmancha no ar”... O limite desta transformação é a passagem do Estado Liberal para a “sociedade liberada”, na qual o modelo clássico baseado em princípios passa dar passagem ao modelo cibernético de consentimento sobre decisões: A razão comunicativa de J.Habermas. Propondo um novo conceito de razão consensual, como resultado desta interação social, Habermas redefine o espaço público como um novo espaço de articulação entre a Politica, o Estado e o direito, ao tempo em que sintetiza, no plano teórico, três fontes até então desarticuladas sobre a moralidade:
“A condição da possibilidade da ‘ética discursiva’ é a inter-subjetividade – a interação mediatizada pela linguagem. A moralidade de Habermas (Jürgen Habermas) é dialógica em contraste com a de Kant, monológica. A moralidade habermasiana é negociada no contexto da Lebenswelt (mundo vivido) em oposição à heteronomia imposta pelo sistema social de Durkheim; é o fruto de uma interação comunicativa que visa à autonomia da espécie, complementando a moralidade piagetiana, em que a autonomia resulta da psicogênese. Se, por um lado, a “ética discursiva” se define no contraste com a teoria da moralidade de Kant, Durkheim e Piaget, ela pode, por outro, ser interpretada como um esforço de sínteses dessas três teorias: é kantiana ao aceitar a autonomia e a dignidade do homem como telos da moralidade, é durkheimiana quando reconhece a importância do social e é piagetiana quando admite que os princípios que orientam a ação moral não são inatos, mas objeto de uma construção psicogenética. ( Barbara Freitag - A questão da moralidade, Casa das Musas, Brasília, 2003:pg231)
Assim sendo, a questão da inclusão ou não dos direitos humanos transita cada vez mais do Direito, que o articula ao Estado, para a Política, que o articula à própria sociedade. Enquanto discussão ética, inequívoco. Enquanto forma de realização, um paradoxo: Quando elegemos, como ponto de partida, a moral do respeito universal, então nos comprometemos a considerar todo ser humano como objeto de respeito e este respeito supõe o reconhecimento de suas necessidades básicas. Somente a atribuição de direitos sociais pode, então, garantir a satisfação de tais necessidades e, por conseguinte, fornecer a todos os indivíduos as condições mínimas para a realização de uma vida digna. Ou se quisermos, resumindo o argumento do reconhecimento dos direitos sociais básicos segundo Maria Clara Diky (Direitos Humanos a Moral do Respeito Universal -
Ver. Princípios Junho 95):
“1) Todos os integrantes da sociedade moral possuem direitos;
2) O exercício de tais direitos supõe uma vida saudável e ativa;
3) A garantia de condições mínimas de subsistência é uma condição mínima para uma vida saudável e ativa;
4) A garantia de condição mínimas de subsistência é, portanto, desde sempre, já pressuposta, quando os integrantes da sociedade moral se outorgam direitos. A atribuição de direitos sociais básicos é, assim, um princípio fundamental da sociedade moral”.
A questão, entretanto, não é meramente moral, mas política. E econômica. Como assegurar que estes princípios (válidos) sejam efetivamente cumpridos? No Brasil, a Constituinte inflamada de 1988 não teve dúvidas e regozijou-se de ser uma “Constituição-Cidadã” , no sentido de ter inscrito no Pacto os compromissos com Direitos Individuais, Coletivos e Sociais (Cap. I e II Constituição de 1988).
Realização suprema do avanço das forças populares naquele momento histórico, o Pacto de 88 só viria a confirmar, depois, as objeções teóricas à tamanha ampliação dos direitos humanos. Os custos de muitos direitos sociais ali inscritos soterram a letra da lei, onerando sobremaneira o Orçamento da Previdência Social, ao qual se debitam os ônus da execução da Lei Orgânica da Assistência Social – (LOAS). Mais do que nunca, também, o ajuste da economia brasileira às exigências da globalização viria estreitar, na
prática do mercado, os incluídos de fato na ordem contratual e não a realizar os princípios morais de equidade registrados no Constituição. Isso posto, argumentam as autoridades, pior para uns, melhor para todos, pois o Estado se supõe vir recuperando sua capacidade de financiamento e desta forma recompondo suas funções básicas de acumulação e legitimação.
Trata-se, pois, não só de proclamar ou inscrever os Direitos Sociais na Constituição, mas de vê-los, cada vez mais, implementados corretamente, o que dependerá tanto do planejamento e execução de políticas compensatórias, como suas respectivas e qualificadas avaliações. Mas, além da premissa moral, implícita na razão iluminista, a inclusão destes Direitos como responsabilidade do Estado, há que se rever a própria relação entre o Estado, O Direito e A Política. Já não se trata de democratizar o Estado e de ampliar a extensão dos direitos, mas de refazer a Política: “O Direito fornece estabilidade e certeza artificial e contingente assim como faz o Estado, que organiza a comunicação entre a Política e o Direito. No entanto, enquanto a sociedade representa para si próprio o futuro como risco e o vincula, por intermédio do direito, o mesmo não se deixa juridicizar .Os limites do Direito, ou seja seu futuro, dependem de sua estrutural incapacidade de lidar com o risco”.( Di Giorgio - Democracia, Estado e Direito na Sociedade Contemporânea, in Cadernos da Escola Legislativo, BH Julho de 1995)
Concluindo: Se é moralmente mandatória a extensão dos direitos humanos ao campo do social e econômico, não há como impedir que sua efetiva aquisição, em muitos casos, se resolva, não por procedimentos legais ou administrativos, mas do acesso à Justiça, que por sua vez não está preparada para arbitrá-lo, seja porque não tem como lidar com o risco, seja porque sequer lhe é exigida a competência para julgar, com isenção, as disputas sobre o princípio da escassez que rege a economia. O dilema, portanto, não tem soluções fáceis e se abre para um amplo e complexo debate a partir da aplicação do texto Constitucional. E se é bem verdade que a História da Humanidade é a história da luta de classes, como percebeu Karl Marx no Manifesto de 1848, também é verdade que não se pode simplesmente transferir esta vasta carga de conflitos inevitáveis em qualquer sociedade exclusivamente para o Poder Judiciário. À Política o que é da Política e ao Judiciário o que lhe corresponde. Jamais um pelo outro.
IV
Leia na próxima Edição:
A ESQUERDA E OS DIREITOS HUMANOS
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